Justiça? “Quase sempre, não protege pessoas padecentes de doença mental”
Um artigo de opinião assinado por Dantas Rodrigues, sócio-partner da Dantas Rodrigues & Associados.
“Passados mais de vinte anos vamos ter, enfim, uma nova lei de saúde mental. Tanto tempo de espera ficou a dever-se, inequivocamente, ao desinteresse político que entre nós sempre existiu por assunto tão magno e sério. E tamanho desinteresse muito ficou a dever-se à própria sociedade civil contemporânea, aqui e algures, que prefere virar a cara quando se depara com pessoas sofredoras de transtornos psíquicos, palavra cujo étimo deriva do grego ‘psyche’, o que, nas línguas latinas, significa ‘alma’.
Em Espanha, onde um recente estudo realizado pela Universidade Complutense de Madrid apurou que uma em cada quatro pessoas acredita que os que sofrem dos tais transtornos psíquicos são perigosos, aproximam-se deles com medo, tendem a evitá-los e consideram que devem ser removidos da sociedade. Em termos muito claros e simples, isto significa que uma quantidade considerável da população do país vizinho manifestou a sua intenção de não estabelecer relações de nenhum tipo com pessoas sofredoras de problemas de saúde mental e duas em cada três preferem nem sequer aproximar-se.
As doenças mentais têm uma longa história de criminalização e mácula, embora mais de noventa por cento das pessoas com transtornos desse género nunca tenham cometido atos violentos
O estigma da sociedade espanhola replica-se na nossa, também não querendo ter tais pessoas por perto.
No tocante à justiça, sabe-se que, quase sempre, ela não protege as pessoas padecentes de doença mental, já que obter uma inimputabilidade é caso raro. Conseguir ser declarado ter agido sem culpa apenas acontece nos casos de anomalia psíquica grave. Nem os juízes têm paciência para ouvir as declarações de quem, como sói dizer-se, não regula bem.
As doenças mentais têm uma longa história de criminalização e mácula, embora mais de noventa por cento das pessoas com transtornos desse género nunca tenham cometido atos violentos. É mesmo muito pequena a percentagem de crimes violentos como resultado direto de sintomas psiquiátricos, a não ser na produção fílmica hollywoodesca…
Assim, e indo ao encontro do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e da recomendação do Comité Europeu que aplica a Convenção Europeia para a Prevenção da Tortura e Penas ou Tratamentos Desumanos e Degradantes, é muito questionável a criminalização das pessoas com transtornos mentais, mesmo nos casos em que se aplicam medidas de internamento que tenham uma duração ilimitada ou mesmo perpétua, contrariando o entendimento de que para todos os cidadãos – imputáveis e inimputáveis – a regra é a de que não pode haver privações da liberdade com carácter perpétuo ou de duração ilimitada ou indefinida.
Prender pessoas com transtornos mentais, sem o necessário tratamento médico, constitui uma clara violação dos direitos humanos
Sabe-se perfeitamente que prender pessoas com transtornos mentais, sem o necessário tratamento médico, constitui uma clara violação dos direitos humanos. Mas o que se pretende é que haja mudanças práticas no exercício da justiça, que contribua para uma nova visão sobre a saúde pública, permitindo desse modo aprofundar o valor e o compromisso entre o que deve e não deve ser criminalizado.
Como qualquer outro ser humano, a pessoa padecente de doença mental possui o direito ao tratamento, o qual deverá ser sempre efetuado de forma digna e respeitadora dos seus direitos fundamentais. E toda e qualquer medida de segurança, que é a pena aplicada aos inimputáveis, deve ser revista obrigatoriamente ao fim de um ano, avaliando se a pessoa deve ou não continuar na situação de internada. A regra tem de ser a procura de uma eventual cura e não a da reclusão por tempo indeterminado, e, sempre que as circunstâncias o permitam, a da aplicação de tratamentos ambulatórios, naturalmente seguidos de um acompanhamento que nunca perca de vista os respetivos enquadramentos familiares e sociais.
Não basta mudar a lei da saúde mental. As decisões dos tribunais têm de ser identicamente mudadas, pois que são eles que condenam à cadeia ou ao internamento hospitalar.
A justiça do presente, é dia a dia mais apoiada pelos pareceres técnicos das perícias científicas, onde o espaço para a prova testemunhal «do que se viu ou não se viu» se encontra, felizmente, cada vez mais afastada. As ferramentas para julgar são mais assertivas, cabendo aos juízes a interpretação do Direito, que o devem fazer baseado no conhecimento científico e deixarem de lado a prova por convicção, a livre apreciação de prova (apreciada de acordo com as regras da experiência e a livre convicção do juiz).
A justiça do século XXI não pode (nem deve) continuar dependente da intuição e da perspicácia de quem julga. No dia em que os julgamentos por intuição acabarem, acabará também um dos muitos períodos obscuros da Justiça.”