Nancy Pelosi, presidente da Câmara dos Deputados dos EUA, vestiu-se de diplomata e viajou até ao Taiwan – arquipélago da Ásia Oriental constituído pelas ilhas Formosa e dos Pescadores e pelos ilhéus Chin-Men Tao e Ma-Tsu Tao – numa missão que em direito internacional é conhecida por diplomacia ad hoc, assim designada porque, pela sua temporalidade e excecionalidade, se incumbem os enviados itinerantes sem grau diplomático.
Assim, numa rápida incursão diplomática, a presidente da Câmara dos Representantes, também conhecida por Speaker of the House, tratou de questões internacionais que, pela sua especificidade, só em diplomacia ad hoc podiam ser abordadas.
A velha questão do Taiwan não é mais do que um conflito congelado desde 1949, ano em que terminou a Guerra Civil na China e o respectivo Partido Comunista, sob a chefia de Mao Tsé-tung, alcançou a vitória e o poder após derrotar os nacionalistas do Kuomintang. Nessa altura, quase dois milhões de pessoas, incluindo Tchang Kai-chek e os mais altos dirigentes daquele partido, tiveram de fugir para a Ilha Formosa, passando a ser conhecida por China Livre e, depois de 1971, quando deixou de representar a China como um todo na ONU, recebeu o nome de Taiwan.
Com o passar do tempo o Taiwan tornou-se uma economia dinâmica e tecnológica e, a partir da década de 1980, passou a produzir 90 por cento dos semicondutores. Quanto aos supramencionados ilhéus Chin-Men Tao e Ma-Tsu Tao o que deles melhor se conhece é que fornecem abrigo seguro a florescentes paraísos fiscais.
Tanto a Europa como os EUA, enormemente dependentes da mão-de-obra asiática, não conseguem viver sem a alta tecnologia fabricada no Taiwan e, em boa verdade, em todo o Extremo Oriente, afigurando-se, de toda a urgência, impedir politicamente a interrupção da cadeia de produção naquelas paragens remotas e altamente instáveis, paragens essas capazes, a todo o momento, de criar histerias e apavoramentos globais. Já bastam os cinco meses de guerra na Ucrânia para a União Europeia, absolutamente incapaz de definir prioridades, ir começando diariamente a sentir na pele que, quem não dispõe de matérias-primas energéticas, não pode (nem deve) dar passos maiores que as suas débeis e curtas pernas.
Se o diálogo diplomático contínuo com a Federação da Rússia não impediu a invasão da Ucrânia, quem poderá garantir que a República Popular da China, com a sua conhecida política «Uma só China», aproveitando a guerra no Leste da Europa, não avance para a anexação do Taiwan?
Desde há 43 anos que a República Popular China, o Taiwan (de seu nome oficial República da China) e os EUA jogam um complicado e periclitante jogo de equilíbrios políticos e militares, com todo um sem-número de pressões discretas (e secretas), que não oferecem quaisquer garantias de paz. Além disso, as evidentes diferenças culturais em relação à China comuno-capitalista («um país, dois sistemas») alimentaram um sentimento difuso de independência, facilitado pela protecção dos EUA que, em 1979, para efeitos de estabelecimento de relações diplomáticas, acordaram, por escrito, com Deng Xiaoping, a existência legal de uma China única.
Em teoria os EUA promovem «relações não oficiais com o Taiwan», nas quais o diálogo diplomático não é efetuado por meio de embaixadas, mas, sim, através de instituições privadas. Na prática, porém, Washington mantém laços muito fortes com o governo insular, tal como ficou demonstrado durante o mandato de Donald Trump, que incrementou a venda de armamento moderno e sofisticado, e facilitou a formação especializada de altos quadros militares taiwaneses. Quanto ao seu sucessor, Joseph Biden, não se cansa de reiterar pública e regularmente que tem a obrigação legal de ajudar o Taiwan a defender-se da República Popular da China, caso irrompa um grave conflito bélico entre ambos os países, a fim de garantir a estabilidade no Estreito que os separa.
Agora, volvido quase meio século, talvez se possa dizer que a China ainda não conseguiu encontrar o modelo político adequado para uma anexação que mereça o apoio da população do arquipélago. O paradigma «um país, dois sistemas», teorizado por Deng Xiaoping em 1997, e que a República Popular da China levou à prática em Hong Kong e em Macau como exemplo do que poderia ser a incorporação do Taiwan, tem-se mostrado uma deceção para muitos dos habitantes do antigo enclave britânico, que acabaram por perder cada vez mais liberdades, sobretudo depois do insucesso da revolução colorida de 2019.
Muitos acharão que parece não haver atualmente problema mais sensível para a China do que a questão levantada pelo Taiwan, por isso a extemporânea e eleitoralista visita, de Nancy Pelosi representou uma nítida mensagem de apoio à independência de um pequeno arquipélago onde residem 23 milhões de habitantes. As consequências de tal comportamento iremos decerto conhecê-las em breve, até porque, à boa maneira chinesa, «esquecer a história é traição, e negar uma ofensa é consenti-la». Basta lembrar as Guerras do Ópio e o Movimento Yihetuan (vulgo Guerra dos Boxers) para ver como os ingleses ainda hoje são profundamente odiados naquelas paragens, tal com se pôde observar, em 1997, pelo distanciamento e frieza de Jiang Zemin, aquando da transferência de soberania de Hong Kong,
Por enquanto tudo calmo sob os ásios céus. O pior vai ser quando o Comité Central do Partido Comunista da China se cansar das gesticulações dos políticos e resolver ordenar ao Exército Popular de Libertação para agir em conformidade. Aí, então, a palavra pertencerá aos canhões e ficaremos – se é que já não estamos – a um curtíssimo passo de uma nova Guerra Mundial.
FONTE adv Joaquim Dantas Rodrigues observador.pt