Economia

Dinheiro público não é de quem lhe deita a mão

Um artigo de opinião assinado por Dantas Rodrigues, sócio-partner da Dantas Rodrigues & Associados.

“Os políticos andam nervosos com as recentes buscas ocorridas nas sedes nacional e distrital do PSD do Porto, e na casa do ex-presidente do mesmo partido. E, certamente, não foram poucos os que, indignados por tamanho atrevimento, interrogaram os seus próprios botões: como é que é possível ver a Polícia Judiciária a fazer buscas nas instalações de um dos grandes partidos do regime? Mas que mal tem pagar ordenados a funcionários partidários com recurso a verbas da Assembleia da República, que são exclusivamente destinadas a cargos de assessoria dos grupos parlamentares?

Só de imaginar o sem-número de perguntas que os nossos políticos fizeram a si próprios no passado fim de semana, intui-se logo que a lista, a ser feita, assumiria contornos intermináveis. Apesar do seu aparente desprendimento pelo dinheiro (ninguém protesta com os salários, por vezes modestos, que recebem), não se pode fazer política sem dinheiro, e também sem ele não existiriam partidos ou grupos políticos nem, tão-pouco, a possibilidade de se tornarem opções de poder através das eleições. Contudo, também não é menos verdade que o dinheiro que recebem do Estado tem fins específicos legalmente previstos, o mesmo é dizer que não pode (nem deve) ser aplicado no que lhes dá jeito. Igualmente, um qualquer cidadão não pode dispor do dinheiro do IVA para pagar salários, mesmo que invoque não possuir recursos suficientes para os honrar.

O debate, sobre o eterno problema do uso (e abuso) do dinheiro público tem anos, e a sua utilização indevida é considerada crime em qualquer país europeu. Embora os políticos que deitam a mão a dinheiro indevido falem com frequência em mera irregularidade financeira, asseverando que o dito se destina à ação política e não tem outro destino. Usando naquilo que muito bem entendem e a que, entendem ser ação político-partidária.

A legalidade normativa, com fundamento constitucional, encontra-se tipificada nos crimes da responsabilidade de titulares de cargos políticos, os quais respondem, civil e criminalmente, pelas ações e omissões que pratiquem no exercício das suas funções, desde que previstos na lei penal geral e que mostrem terem sido praticados com flagrante desvio ou abuso da função ou com grave violação dos inerentes deveres.

Clarificando: se o agente, isto é, o arguido tiver consciência ou conhecimento de que a sua ação vai contra o que está disposto na legislação, quer dizer que a sua ação constitui crime, é considerado que agiu com dolo. Comete o crime de peculato de uso , sujeitando-se a uma pena de prisão até 2 anos ou pena de multa até 240 dias.

No entanto, o dolo exclui-se se o agente julga ter o direito de agir de determinada forma ou de «dispor da coisa».  Nesse sentido, compreende-se a defesa cerrada feita por uma série de individualidades partidárias em defesa da «prática useira do desvio das verbas da Assembleia da República para uso na ação política». Se efetivamente puder «dispor da coisa», poderá dar ao dinheiro público um destino para uso público diferente daquele a que estiver legalmente afetado, não cometendo, assim, qualquer crime de peculato.

Olhando aqui ao lado para Espanha, país, com vários casos de corrupção que envolvem dirigentes políticos, o crime de peculato designa-se por «crime de malversación de fondos públicos». Foi este ilícito penal que esteve na base das pesadas condenações a que foram sujeitos os líderes independentistas da Cataluna por se considerar que utilizaram, indevidamente, dinheiro público para organizarem o referendo de 1 de outubro de 2017 e a posterior declaração unilateral de independência daquela Comunidade Autónoma. Na época, o artigo 432.º do Código Penal do país vizinho previa uma sanção com pena de prisão que ia até doze anos de prisão se o valor do dano fosse superior a 250 mil euros, e ainda incluía uma sanção de inabilitação para o exercício de funções públicas por um período máximo de dez anos.

O governo de Pedro Sánchez, junto com o partido Unidas Podemos, decidiu reformar o Código Penal com o objetivo de diminuir as penas. Assim, em 23 de dezembro de 2022, no Boletín Oficial del Estado, foi publicada a Ley Orgánica 14/2022 que reformou o tal Código Penal, e o «crime de malversación» sem intenção lucrativa própria (perfeitamente enquadrável nos factos que originaram as buscas no PSD) passou para uma pena máxima de quatro anos de prisão em vez dos doze de anteriormente.

Como bem se percebe, ambos os governos ibéricos não gostam de punir políticos que utilizam e administram dinheiro público como se não houvesse regras, e se os punem é sempre de levezinho.

Os princípios e valores da democracia assentam no bom governo, e o bom governo assenta na boa gestão do dinheiro público, a qual tem de observar e respeitar estritamente o previsto na lei. Se assim não for o dinheiro deixa então de ser público, mas sim de quem lhe deitar a mão.”

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