
A história do Direito português está profundamente entrelaçada com a tradição cristã e, mais concretamente, com os procedimentos da igreja católica e da Santa Sé. A influência dos papas não se limitou unicamente à esfera religiosa. Bem pelo contrário, estendeu-se igualmente ao campo jurídico, político e social, especialmente durante a Idade Média e a Idade Moderna. Através de bulas, concordatas, intervenções diplomáticas dos seus núncios e decisões canónicas, os papas exerceram sempre um papel determinante na formação e evolução do ordenamento jurídico português.
A intervenção papal mostrou-se decisiva no reconhecimento de Portugal como reino independente. Com efeito, em 1179, o papa Alexandre III emitiu a bula «Manifestis Probatum», que reconhecia D. Afonso Henriques como soberano e legitimava a independência do País em relação ao Reino de Leão. Um documento que teve um importantíssimo valor jurídico, permitindo alicerçar a soberania portuguesa no contexto da Europa medieval.
E foi nessa Europa medieval, mais concretamente entre 20 de setembro de 1276 e 20 de maio de 1277 (oito meses apenas), que pontificou o nosso Pedro Julião, 187.º Papa, com o nome de João XXI – evocado pela Câmara Municipal de Lisboa, então presidida por João Soares, através da edificação, em Itália, na catedral de Viterbo, do lado do Evangelho, do mausoléu onde os seus restos repousam eternamente.
Durante os Descobrimentos, no Renascimento, os Papas desempenharam um papel central na legitimação jurídica das nossas conquistas. Fizeram-no através de bulas, isto é, por via de documentos oficiais, geralmente em forma de decreto público ou de carta de concessão, por eles firmados e chancelados com um selo de ouro, prata ou chumbo («bula») conforme a sua relevância.
Foram especialmente importantes para Portugal as seguintes bulas: a) «Dum Diversas» (1452) e «Romanus Pontifex» (1455), ambas do Papa Nicolau V, as quais nos outorgavam o direito de conquista e de domínio sobre terras descobertas fora da Europa; b) «Inter Caetera» (1493), do Papa Alexandre VI; e c) pese o facto de não ser bula, equivaleu a tal o subsequente Tratado de Tordesilhas (1494), igualmente autenticado pela Igreja, em que o chamado «Novo Mundo» viria a ser dividido entre Portugal e Castela, através de um meridiano situado 370 léguas a oeste da ilha de Santo Antão, no arquipélago de Cabo Verde. No Tratado ficou estipulado que todos os territórios que se encontrassem a oeste desse meridiano eram pertença da coroa espanhola, e todos os territórios que se situassem a leste do mesmo eram pertença da coroa portuguesa.
Estas bulas papais deram fundamento jurídico ao nosso império, sendo usadas como base para a legitimidade das províncias ultramarinas portuguesas, assim designadas entre 1951 e 1975, com exceção dos enclaves de Goa, Damão e Diu (Estado da Índia) e de Macau (Concessão).
No século XV, graças à excelência da nossa diplomacia, Portugal e a Santa Sé estabeleceram um acordo de padroado português em que o papa delegava ao rei de Portugal o poder exclusivo da organização e financiamento de todas as atividades religiosas nos domínios e nas terras descobertas ou colonizadas por portugueses. Significava isso que os nossos monarcas podiam nomear bispos, padres e outros cargos eclesiásticos dentro da igreja católica em territórios sob sua influência em continentes tão longínquos como a América do Sul, a África, a Ásia e a Oceania.
No século XIX, esse sistema ainda vigorava, especialmente em Macau e em Goa, denominada «Roma do Oriente», onde o Estado português manteve o controlo sobre as estruturas eclesiásticas até finais de 1961.
Com o derrube da monarquia e a consequente chegada da República, a 5 de outubro de 1910, foi estabelecida a laicização do Estado, tendo o governo provisório, presidido por Teófilo Braga, procurado de imediato reduzir a influência religiosa na sociedade portuguesa. Exemplo disso foi a Lei da Separação do Estado das Igrejas, publicada em 20 de abril de 1911, determinando o confisco dos bens eclesiásticos e a proibição do ensino religioso nas escolas públicas, deixando a «religião católica apostólica romana» de ser religião oficial.
A relação com a Santa Sé não terminou aí, mas entrou em conflito, principalmente de 1910 a 1930, tendo o Papa Pio X, através da encíclica «Iamdudum in Lusitania» (24 de maio de 1911), condenado explicitamente a situação em Portugal. A encíclica é um documento pontifício que aborda questões que afetam a missão da igreja e a ação dos seus ministros e a liberdade dos seus crentes. Nesse documento, Pio X acusou o governo português de promover a perseguição religiosa, de atentar contra os direitos da igreja e de incitar os fiéis à ruptura com a fé católica.
Com a Constituição de 1933 nasceu o Estado Novo, regime conservador e autoritário chefiado por António de Oliveira Salazar, católico praticante, o qual normalizou as relações com a Santa Sé, assinando a famosa «Concordata entre a Santa Sé e a República Portuguesa de 1940», juntamente com o «Acordo Missionário» (7 de maio), a fim de regular juridicamente a posição da Igreja nas áreas da educação, culto, casamento, e nomeação de bispos.
De acordo com o historiador José de Carvalho, Pio XII foi um Papa amigo de Salazar e de Cerejeira, que amou os portugueses e que, inclusive, esteve para se exilar em Portugal.
A Igreja Católica foi então reconhecida como uma instituição com personalidade jurídica, pelo que passou a exercer livremente o culto e as suas actividades, ficando garantido o ensino religioso em escolas públicas e o reconhecimento legal do matrimónio canónico. Tal refletiu a estratégia do Vaticano em revigorar a influência da igreja junto de regimes conservadores. O Estado aceitava o papel da Igreja na sociedade portuguesa, e a Igreja aceitava o Estado Novo resultante, pela Constituição de 1933, da Segunda República.
Anos mais tarde, o Papa João XXIII influenciou os processos de descolonização, condenando, na encíclica «Pacem in Terris» (1963), a presença portuguesa em África, ao mesmo tempo que exalçava o direito dos povos à autodeterminação. A encíclica emprestou força moral e legitimidade internacional aos movimentos anticoloniais, inclusive nos círculos católicos, desencadeando, a chamada Teologia da Libertação.
Como afirmou certo dia João XXIII: «A igreja católica deve estar atenta aos sinais dos tempos». E esses sinais exigem dela uma participação ativa não só nas questões espirituais, mas, também, nos desafios concretos do mundo contemporâneo. Os laços entre a Igreja Católica e o Direito Português são intemporais, sim, é verdade, mas, nos tempos que correm, é mais assisado dar a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus.
Artigo de Adv Joaquim Dantas Rodrigues






