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Talibãs mais fortes do que nunca um ano após retomarem o poder

Depois de uma ofensiva relâmpago, a queda de Cabul a 15 de agosto de 2021 significou também a queda do presidente Ashraf Ghani e o regresso dos "estudantes de religião" ao poder, quase 20 anos após terem sido derrubados pela invasão norte-americana no pós-11 de Setembro. O Vale de Pansjhir já foi sinónimo de resistência, mas é hoje uma sombra do que era.

Um ano depois de regressarem ao poder no Afeganistão, os talibãs são uma força militar mais forte do que nunca, mas as ameaças à sua governação ainda existem. Para reforçarem o seu controlo, os talibãs enviaram milhares de combatentes para o Vale de Panjshir, berço da única ameaça militar convencional que os islamitas enfrentaram desde que retomaram o poder. O vale panorâmico, localizado no nordeste do Afeganistão, foi durante décadas o bastião da resistência contra as forças externas e o berço da Frente de Resistência Nacional (FRN).

Do outro lado do espectro, o grupo do Estado Islâmico da Província de Khorasan (IS-K) tem colocado bombas e feito inúmeros atentados suicida nos últimos 12 meses. Mas os jihadistas têm-se focado em alvos fáceis, nomeadamente mesquitas xiitas e templos sikh, em vez de enfrentar os talibãs de frente – a exceção foi há dias, com a morte do proeminente clérigo Rahimullah Haqqani.

Depois da saída caótica das tropas lideradas pelos EUA a 31 de agosto do ano passado, as ameaças ocidentais aos talibãs também foram esmagadas. Ainda assim, o recente assassinato do líder da Al-Qaeda, Ayman al-Zawahiri, num ataque de drone norte-americano no seu esconderijo em Cabul mostra o quão vulneráveis os líderes talibãs podem estar diante de um inimigo com tecnologia avançada.

Apesar de ser o Vale de Panjshir que preocupa mais os talibãs, o analista Michael Kugelman do think tank Wilson Center, de Washington, acredita que uma resistência séria é algo distante. “Se começarmos a ver o IS-K a começar a realizar mais ataques… penso que o FRN poderia beneficiar com isso”, disse à AFP. “Se os afegãos estiverem a ver as suas famílias a explodir por causa do IS-K isso pode, penso eu, representar um golpe à legitimidade dos talibãs e beneficiar o FNR, dar-lhes uma janela de oportunidade”, acrescentou.

“Medo nos nossos corações”

Panjshir foi a última província a cair no ano passado, quando os talibãs lançaram a sua ofensiva relâmpago no país. Aguentou até 6 de setembro, três semanas depois da captura de Cabul. Uma calma inquietante envolveu o vale, que fica a cerca de 80 quilómetros a norte de Cabul, até maio, quando o FRN emergiu das montanhas para voltar a atacar. Em resposta, os talibãs enviaram mais de seis mil combatentes em longas colunas de veículos blindados, espalhando o medo no coração dos habitantes locais.

“Desde que os talibãs chegaram ao vale, as pessoas estão em pânico, não podem falar livremente”, disse Amir, falando à AFP num sussurro na capital da província, quando uma patrulha passava. “Os talibãs pensam que se os jovens estão sentados juntos, então devem estar a planear algo contra eles”, acrescentou, pedindo para não ser identificado pelo verdadeiro nome.

Nos anos 1980, combatentes liderados por Ahmad Shah Massoud – conhecido como o Leão de Panjshir – combateram as forças soviéticas a partir dos picos escarpados que rodeiam o vale. Quando o Exército Vermelho recuou, o Afeganistão caiu numa guerra civil e os talibãs assumiram o controlo do país. Panjshir aguentou-se, apesar de Massoud ter sido assassinado dois dias antes dos atentados de 11 de Setembro de 2011 nos EUA.

O FRN é atualmente liderado pelo seu filho, Ahmad Masood, que como muitos líderes do FRN está exilado num local desconhecido. As forças talibãs controlam com firmeza a estrada principal que atravessa o vale, com postos de controlo em todo o lado.

Milhares de pessoas fugiram do vale – que já foi a casa de cerca de 170 mil pessoas – e uma atmosfera de medo prevalece, com os moradores a falar só se os seus nomes verdadeiros não forem revelados. “Antes, costumávamos sentir-nos bem a vir aqui”, disse uma visitante chamada Nabila, que estava no vale com as quatro irmãs para assistir ao funeral da mãe. “Agora, temos medo nos nossos corações. Temos medo que se os nossos maridos vierem, serão arrastados do carro”, afirmou.

Querer vs. capacidade

Os grupos de direitos humanos acusam os talibãs de abusos alargados em Panjshir, incluindo execuções extrajudiciais – alegações que eles negam. “Os que são detidos arbitrariamente também enfrentam tortura física e espancamentos que, em alguns casos, resultam mesmo em morte”, disse a Amnistia Internacional em junho. “Os talibãs detêm e ameaçam matar os familiares dos combatentes que estão agora na resistência”, disse Jamshed, residente no Panjshir. “Estas ameaças compelem muitos combatentes a descer das montanhas e entregar-se.”

Ainda assim, os talibãs enviam mensagens contraditórias sobre a ameaça que a FRN representa – negando-lhe a existência, por um lado, mas enviando tropas para os combater. “Não vemos nenhuma frente, a frente não existe”, disse Abdul Hameed Khurasani, líder de uma unidade das forças especiais talibãs destacada no vale. “Só há poucas pessoas nas montanhas. Estamos a persegui-los.”

Ali Nazary, líder do departamento de relações externas da FRN, põe em causa as afirmações dos talibãs. “Se fôssemos só alguns combatentes e se tivéssemos sido empurrados para as montanhas, então porque é que estão a enviar milhares de combatentes”, questionou. Nazary alega que a FRN tem três mil combatentes e bases em toda a província – algo impossível de verificar de forma independente.

Kugerlman acredita que o FRN tem a vontade de lutar, mas não a capacidade. “Para a FRN ser um grupo verdadeiramente efetivo, vai precisar de mais apoio externo, militar e financeiro”, indicou.

OS PROBLEMAS NO PAÍS DE 38 MILHÕES

Divisão sobre reformas

Infames durante a sua primeira passagem pelo poder devido à sua brutal repressão dos direitos e liberdades, os talibãs prometeram fazer diferente desta vez. A nível superficial, pelo menos, parecem ter mudado em alguns aspetos: as televisões eram proibidas e agora a maioria dos afegãos tem acesso à Internet e às redes sociais, os estádios de críquete estão cheios em Cabul, as meninas podem frequentar a escola primária e as mulher jornalistas entrevistam oficiais do governo. Mas há um grupo mais radical que é contra estas reformas, vistas como cedência aos inimigos ocidentais.

Mulheres no escuro

Depois de duas décadas de liberdade, as mulheres afegãs viram-se novamente relegadas para fora da vida pública, com restrições em relação a onde podem trabalhar, como podem viajar ou o que podem vestir. As mulheres foram, por exemplo, afastadas da maioria dos trabalhos no governo ou viram os salários cortados e foram informadas que deviam ficar em casa. São também normalmente as primeiras a serem despedidas nas empresas privadas. Em relação à educação, as escolas secundárias continuam a ser-lhes barradas, apesar das promessas em contrário, sendo necessário voltar a estudar em escolas secretas.

Crise humanitária

As Nações Unidas dizem que a crise humanitária no Afeganistão, onde vivem 38 milhões de pessoas, é a pior do mundo – os hospitais, muitos sem condições, estão cheios de crianças malnutridas. A pobreza, que se sente especialmente no sul, alcançou novos níveis desesperantes, exacerbados pela seca e pela inflação causada pela invasão russa da Ucrânia. Os EUA congelaram sete mil milhões de dólares de bens do banco central, o setor bancário formal colapsou e a ajuda estrangeira, que representava 45% do PIB, parou de um dia para o outro. Um grupo de 71 economistas norte-americanos e internacionais apelaram há dias ao presidente Joe Biden para que descongele os bens afegãos, mostrando-se preocupados com o papel dos EUA no aprofundar da crise económica e humanitária.

Fonte
dn.pt
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